Denis Villeneuve é um diretor canadense, fez seu primeiro longa em 1998 e com “O Homem Duplicado” chega a seu sexto. Desde “Incêndios”, que concorreu ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, o diretor vem ganhando cada vez mais holofotes com filmes que emulam uma certa complexidade e densidade.
Em O Homem Duplicado, adaptado de livro homônimo de José Saramago, o diretor usa uma fórmula que já havia utilizado em seus longas anteriores. Ele trabalha com uma informação, e a desmonta em uma espécie de quebra-cabeças, fazendo com que o final do filme seja a peça final do enigma proposto, e recheia o enredo com elementos que carregam certo grau de impressionabilidade, seja a frase de efeito “Como um mais um pode ser um?” em “Incêndios”, seja a metáfora da aranha neste último.
Isto atrelado à uma mão bastante pesada em uma dramaturgia quadrada que vem sendo utilizado em seriados televisivos. Alimenta-se o espectador com uma nova informação interessante sobre a trama a cada cena, de modo com que sua curiosidade seja levemente saciada por uma lado enquanto por outro a vontade de saber logo o final aumenta cada vez mais. Dan Brown é um autor que se utiliza muito desta fórmula em seus livros.
O maior problema destas escolhas é que todos os elementos e toda o esforço na criação do filme focam somente a trama, nunca um desenvolvimento maior e mais profundo de um personagem. O diretor tinha em mãos uma obra que permitiria diversas reflexões sobre um personagem confuso, a questão da identidade por si só era um prato cheio a ser explorado. Porém preferiu fazer um filme frio, onde até mesmo as emoções retratadas nada mais são do que dicas para que se chegue a uma resposta no final.
Chegar a esta resposta – o que dificilmente se consegue em O Homem Duplicado sem algum esforço, seja de revisitar o filme algumas vezes, seja fazer buscas por soluções e pistas na internet – fornece ao espectador uma sensação forte de orgulho próprio e quase instantaneamente uma admiração pelo filme, que o propôs tal enigma, complicado porém com todas as peças para que seja resolvível. O erro está em chamar isto de um bom filme, ao menos por esta razão.
David Lynch quando fez “Cidade dos Sonhos” propôs algo parecido, inclusive é de se suspeitar uma influência direta, ainda mais com a participação de Isabella Rossellini, uma das musas de Lynch. Porém em “Cidade dos Sonhos” a cena do Club Silencio sozinha tem muito mais cinema do que toda a obra de Villeneuve.
E se a ideia em um primeiro momento parece ser passar a estranheza de se ter uma outra pessoa igual a você vivendo no mundo – sentimento aliás que é forçado goela abaixo do espectador com trilha sonora e fotografia que a todo tempo tentam desesperadamente criar um clima de suspense que não cabe em O Homem Duplicado – vale lembrar do ótimo “A Dupla Vida de Veronique” de Kieslowski, que trata sobre tema similar e consegue imprimir um tom de mistério e onirismo muito mais interessante e humano.
Para uma visão um pouco diferente e mais entusiasmada de O Homem Duplicado, confira a crítica do colega Felipe André no Pipocracia.
Assista ao trailer de O Homem Duplicado
Kojac, adoro suas críticas, mas creio que dessa vez essa ficou um pouco rasa (principalmente ao considerar o filme raso rsrs).
Permita-me fazer uns contrapontos.
[spoiler alert]
Primeiro, não acho que necessariamente é preciso encarar a sequência de filmes de um diretor como um todo coerente. Não vejo muita relação entre Incendies e esse filme.
O final do filme não é a peça final do enigma proposto. Quando vemos uma cena de uma aranha sobre a cidade – mesma aranha que se repete em várias outras cenas, como a da dançarina no bordel – já temos indícios suficientes pra entender a “chave” de abordagem do filme. Por falar em chave, a chave que o personagem encontra no envelope é também um elemento interessante para compreender o filme.
Faz muito sentido pensar que esse filme é um filme de ideias (como os romances de Kundera, por exemplo). Os personagens não precisam ser construídos em profundidade, porque eles são simplesmente peças para a problematização de uma determinada questão. Isso pra mim é a grande diferença entre esse e Incendies.
Não existem dois personagens, o ator e o professor. Eles são um só. O ator é o desdobramento psicológico das aspirações e desejos do professor. É através dele que o personagem pode se libertar da estrutura de controle à qual está submetido. Controle, aliás, é o grande tema desde filme (IMHO). Se a cena final é chave para alguma coisa, é apenas para que se entenda a abordagem aos personagens: eles são meros símbolos nessa discussão do controle. O ator é um desdobramento psicológico, é o emergir do inconsciente do personagem principal.
O filme como um todo é um desenvolvimento dessa perspectiva de controle que determina o comportamento do personagem. O filme é um exercício filosófico sobre esse ponto de sua personalidade (que é tão comum a todos os seres humanos, especialmente os homens). A figura feminina, a mãe e as outras mulheres, representam justamente o controle que lança sua teia em cada esquina. A mãe recomenda: “largue esse delírio de ser um ator”, revelando (bem como em outras cenas) a unicidade dos personagens: a duplicação é apenas no âmbito simbólico e psicológico. O segundo personagem, a duplicação (o ator), só existe como uma potencialidade. É o que o que o professor “poderia”, ou “gostaria” de ser, mas não pôde. Não que isso fosse algo consciente: a dificuldade de perceber isso é justamente o que cria o mal estar, e não a ideia de que existe uma cópia do personagem vivendo por aí.
Não vejo nada sendo empurrado goela abaixo. O clima de suspense é ao mesmo tempo a imersão no universo psicológico conturbado desse personagem, que não pode ocorrer sem medo, paranóia, sofrimento. Não se trata também de “onirismo”: se inicialmente as cenas como a da aranha sobre a cidade remetem a algo onírico, o restante do filme revela que na verdade a intenção dos criadores é ultrapassar tudo isso: não é o filme que está falando sobre algo onírico. O filme todo é um grande símbolo para que se faça a discussão do controle, da submissão do sujeito às expectativas sociais e familiares. Essa chave interpretativa revela um filme intrincado em sutilezas e de grande profundidade filosófica. São as ideias, e não as características ou situações vivenciadas pelos personagens, que fazem desse filme uma grande obra. Não é o enredo, a narrativa (como era o caso de Incendies), o propósito: é a problematização de um dilema existencial, através de personagens que nem deveriam mesmo ser incisivos em uma “identidade”: trata-se de um dilema universal.
O controle e toda a problemática do filme ficam claros, por exemplo, quando o professor fala sobre o controle. Dá uma olhada no que está escrito na lousa (uma das minhas cenas preferidas): é a compreensão do controle e de sua abordagem ao longo da História (nesse caso, do ponto de vista político e social). Essas e outras cenas é que constituem a “linha narrativa” da obra. Não é uma história tradicional, não precisa ser. Não é isso que está sendo proposto.
“Primeiro como tragédia, depois como farsa”. O professor já traíra a mulher com quem provavelmente irá se casar. “Você está vendo ela de novo?” pergunta a mulher. No final, quando a aranha aparece, ele mostra um sorriso de conformismo (eis a farsa). Ele havia decidido usar a chave, ir ao bordel, e vê na mulher que está em seu quarto a personificação do controle do qual ele estava tentando escapar. Conformado, admite isso e reconhece, num clímax que é o resultado das construções de todos os elementos anteriores, que está condenado a se submeter, mas que também tem possibilidades concretas de sair dessa lógica.
O Homem Duplicado é em si um “filme de ideias”. Qualquer visão que não leve isso em conta irá mesmo considerar o filme raso. A superfície é de fato plana e chata: a coisa toda está nas entrelinhas.
Abraços!
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Bela análise Luiz Gustavo. Você chegou a ler o livro do Saramago? Acredito que a obra do português seja mais densa, portanto de difícil adaptação ao audiovisual. Creio que o livro fale mais que o filme e estou tentado a lê-lo futuramente. Não gostei do filme do Villeneuve, não o definiria como raso, talvez insosso e confuso. Abraço.
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Velani, acho que é tudo questão de interpretação. Tudo isso que você disse, aliás muitos spoilers, rsrs, eu percebi, e bem, a cena final é a cena onde aparece a chave, que é sim a “chave” para perceber uma das coisas mais importantes do filme, inclusive você mesmo disse, e mesmo assim continuo não o achando tão profundo quanto você, eu não diria necessariamente que o filme é raso, eu acho que o melhor adjetivo pra ele ao meu ver seria: desonesto.
Grande parte das coisas que você mencionou como interessantíssimas, para mim só foram dicas, parte do quebra cabeça que o diretor criou (a questão do controle, a lousa, aquele negócio sobre Hergel e Marx, que inclusive é repetido para deixar claro que se deve prestar atenção àquilo). As aranhas por exemplo, essas sim, uma metáfora que achei extremamente rasa e desnecessária, nem existem no livro. E se existe algum tipo de reflexão no resultado final do quebra cabeças é devido à obra sensacional de Saramago (mesmo ela traçando um caminho totalmente diferente do filme de Villneuve).
Você tem todo o direito de achar minha crítica rasa e o filme profundo, não vou contestar sua interpretação, porque acho que ela é livre. E nem vou tentar te convencer de que você está errado, apenas respondi alguns pontos onde você discordou de mim para deixar mais claras minhas opiniões, por que quando se trata da interpretação de uma obra eu não acredito em certo e errado. Se você sentiu isso, ótimo pra você que teve uma boa sessão. Assim como eu adorei Post Tenebras Lux, por exemplo, que ninguém mais parece gostar, hahaha
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